Os trabalhadores «desglobalizados» no mundo do trabalho do século XXI

O trabalho neste novo modelo produtivo do século XXI, por muito que a OIT continue a promover no plano dos princípios o «trabalho digno e produtivo, em condições de liberdade, equidade e dignidade», aproxima-se cada vez mais do conceito de «trabalho-mercadoria».

Por Carlos Antunes

Com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação, da microeletrônica, da robotização e da inteligência artificial, surgiu a partir da segunda metade do século XX a sociedade pós-industrial ou «sociedade informacional» na expressão do sociólogo Manuel Castells («A Era da Informação: economia, sociedade e cultura»).

Foi a partir daí que o sistema capitalista entrou num novo ciclo de reestruturação do capital que David Harvey («Do Fordismo à Acumulação Flexível») denominou como «acumulação flexível», flexível na medida em que «(…) se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de sectores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.»

Essa revolução teve grandes consequências para o mercado de trabalho, podendo em geral afirmar-se que se foi boa para as empresas, não o foi para os trabalhadores, com o início de um período de racionalização e intensificação do controlo do trabalho.

A mudança tecnológica, a automação, a busca de novos produtos e novos mercados, as fusões de empresas, a busca de novos locais onde a mão-de-obra era barata, tudo isso se tornou necessário para as grandes empresas multinacionais, o que causou a desregulamentação das relações de trabalho, aumentando o desemprego, fomentando o trabalho informal e fazendo surgir relações precárias de trabalho: trabalho temporário, jornada parcial, terceirização, subcontratação, etc.

Ainda no dizer de David Harvey, «(…) diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes de contrato mais flexíveis (…). Mais importante do que isso é a redução do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado.»

O reverso do sucesso económico – em que se passou de um modelo de crescimento desde anos 60 do século XX que permitiu compatibilizar crescimento dos salários com elevadas taxas de lucro para o actual modelo de desenvolvimento assente na redução dos direitos e dos salários como condição para aumentar a competitividade económica das empresas – originou, deste modo, a degradação total das condições de trabalho, sempre invocando uma maior flexibilização das relações laborais com as novas fórmulas do trabalho «atípico»: ‘outsourcing’, subcontratação, empresas em rede, trabalho temporário, falsos «recibos verdes», subemprego. À escala global, o cenário dos baixos salários conjugado com facilidade de mobilidade e deslocalização fez com que o trabalho atingisse ainda maiores níveis de degradação, sob a forma de tráfico de pessoas e trabalho forçado, a nova escravatura moderna, como o comprovam os serviços prestados por imigrantes filipinos e vietnamitas em Los Angeles, bolivianos em São Paulo, indianos em Londres, sudaneses em França ou tailandeses e nepaleses na agricultura em Portugal.

Acresce que ao contrário do proletariado dos séculos XIX e XX, em que o sindicalismo encarnou a primeira forma de organização do poder dos trabalhadores, os «assalariados desglobalizados» do século XXI não possuem identidade coletiva nem capacidade organizativa, por força de a globalização económica com a precarização do trabalho ter enfraquecido o poder dos sindicatos e das organizações dos trabalhadores.

O trabalho neste novo modelo produtivo do século XXI, por muito que a OIT (Organização Internacional do Trabalho) continue a promover no plano dos princípios o «trabalho digno e produtivo, em condições de liberdade, equidade e dignidade», aproxima-se cada vez mais do conceito de «trabalho-mercadoria» em que os direitos laborais e sindicais são banidos desta nova lógica do «empreendedorismo».

É este o resultado das grandes «reformas dos mercados de trabalho» que a economia neoliberal tem vindo a promover à escala global com a progressiva tendência para a redução da necessidade de população empregada devido a fatores como o progresso tecnológico e a deslocalização do trabalho, o que aliado ao aumento da desigualdade na distribuição de rendimentos entre o capital e o trabalho cria as condições para um futuro cada vez mais inseguro para os trabalhadores.

Interpelamo-nos, por muita esperança que se tenha de que o porvir possa revelar-se mais risonho, se este é o caminho que queremos continuar a prosseguir na sociedade do futuro e com que moral nos continuamos a autodenominar «Humanidade»?

 

O autor não segue o novo acordo ortográfico para a língua portuguesa.

 

Carlos Antunes é jurista

 

 

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