É um dos rostos mais marcantes do design em Portugal, senão mesmo o mais marcante. Guta Moura Guedes, cofundadora e presidente da experimenta, uma associação cujo mais recente projeto está ligado ao cluster da pedra em Portugal, diz que «para se fazer diferente tem de se trabalhar no fio da navalha», e por isso «cortamo-nos de vez em quando».
Por António Manuel Venda
Como enquadra o projeto da experimenta num país como Portugal?
A experimenta, quando foi criada, em 1998, teve como objetivo atuar no panorama da cultura em Portugal e colocar Lisboa no circuito mundial dos grandes eventos culturais, com a bienal «experimentadesign» (EXD), cuja primeira edição foi em 1999. E atingiu esse objetivo. Ao longo dos anos tem vindo a modificar-se como estrutura mas também no que se refere aos seus propósitos. O mundo mudou enormemente, tal como Portugal, e era impensável que a experimenta não mudasse também. Não ter iniciado um processo de revolução interna em 2011 teria significado morrer. Neste momento, temos um ativo admirável em termos de conteúdos já produzidos e em desenvolvimento, de know-how, de network e de conhecimento, e a nossa capacidade de ação aumentou e modificou-se. Adequámo-nos ao século XXI. Já não operamos só na área da cultura, mas sim no território amplo da economia criativa e da inovação. É um projeto, a meu ver, fundamental para Portugal, em muitos aspetos.
Pode-se dizer que o vosso mercado não é Portugal mas sim o mundo…
Desde o início que foi assim. A bienal foi desenhada em 1998 com o objetivo de ser um evento internacional, com sede em Portugal, feito para atrair um público dentro e fora de portas. Nunca nada do que pensámos e fizemos ao longo destes já 18 anos de trabalho foi efetuado de outra forma. Criamos dentro de Portugal para o mundo inteiro e isto é algo que nos tem dado uma enorme resiliência e também uma enorme capacidade de atuação e reconhecimento. Mas não é só para o mundo inteiro, é também com o mundo inteiro, pois a nossa rede de criadores é totalmente internacional, tal como a nossa rede de parceiros.
O projeto encerra uma clara ideia de vanguardismo, e não é de agora. Como comenta esta visão?
É exatamente como diz. Nunca quisemos mimetizar nada, sempre quisemos inovar. Num país como o nosso isso é também essencial. Acima de tudo se quisermos protagonizar a paisagem internacional e se quisermos ser sustentáveis. Ser-se vanguardista significa trabalhar no limiar do conhecido, desmantelar fronteiras e arriscar criar o que não existe ainda. É isso que me fascina.
O que destaca no percurso que tem feito com este projeto?
O nosso grande projeto de referência continua a ser a bienal e todo o sucesso e reconhecimento que atingimos, bem como o impacto que tivemos em Portugal e no estrangeiro. Ao nível da educação, da formação, da divulgação, da investigação e da criação na área do design e da arquitetura e da cultura em geral. A sua concretização em Amesterdão veio provar o seu valor internacional, e o facto de termos dividido a bienal em três cidades, Lisboa, Porto e Matosinhos, na última edição, em 2015, provou também o nosso foco, totalmente transversal, em relação ao nosso país. Mas gosto também de referir a singularidade e importância de um projeto como a «Voyager».
Pode falar um pouco desse projeto?
A «Voyager» foi um grande show-case de criatividade nacional, que incluiu mais de 80 designers, arquitetos e artistas portugueses, criado para promover a bienal no estrangeiro. Redesenhámos um camião TIR, que se tornou a própria exposição, autotransportável. Quando chegava a cada uma das cidades onde ia ser apresentada, ficava no espaço público, vista por milhares, mas sempre em frente de uma das maiores instituições culturais da cidade e em parceria com ela. Em Barcelona ficámos entre o MCBA e o FAD, em Madrid à frente do Museu Reina Sofia, em Paris entre o Palais Tokyo e o MAC. Foi um sucesso internacional enorme, altamente surpreendente para o público, os jornalistas e os opinion-makers. E depois de a apresentarmos em Lisboa, no âmbito da «EXD05», fizemos um périplo nacional, levando-a a 10 cidades portuguesas, do norte ao sul, incluindo Funchal e Ponta Delgada. Sempre com o mesmo cuidado, fazendo debates, trabalhando com as escolas locais e com as instituições de cada cidade. Fomos depois convidados, ainda, para a levar a Praga e a Estrasburgo. Penso que deve ter sido a maior operação de internacionalização e descentralização cultural, feita com um só investimento, em Portugal. Acompanhei praticamente todas as saídas, foi inesquecível e por vezes emocionante.
Como olha para a evolução do país ao longo dos anos em que tem existido a experimenta?
Entre 1998 e agora há uma evolução que é verdadeiramente positiva. O nosso país desenvolveu-se muito e em muitos territórios. Na área do design a diferença é abissal: mais escolas, mais formação, mais informação, mais profissionais, mais mercado.
E em termos mais gerais, da própria sociedade?
Os portugueses são muito bem formados. Temos, entre 1998 e agora, muito mais informação disponível. Acho que isso tem contribuído para uma evolução positiva da nossa sociedade. A família e os laços familiares marcam o nosso perfil, e isso faz toda a diferença também. Continuamos a não dominar bem as áreas da comunicação e a falhar em termos de gestão. É aí que devíamos investir agora. Mas somos uma sociedade equilibrada, calorosa, criativa e que dá estrutura a um país que tem tudo para ser extraordinário. Acho belíssimo que a sociedade civil esteja mais ativa e mais presente, é o futuro.
É mais fácil agora o seu trabalho?
O meu trabalho nunca foi fácil. Não é mais fácil agora, nem vai ser mais fácil no futuro. Isto porque nós operamos no território da inovação e do empreendedorismo, numa área complexa que cruza economia com cultura e com uma forte preocupação social. E porque ao invés de seguir modelos já existentes ou de replicar ideias, criamo-las de raiz e fazemo-las acontecer. Ninguém nos paga para pensarmos, não estamos num laboratório de investigação cultural com fundos para inovar, o risco é sempre nosso. Quando se age assim, nunca nada é simples. Não é fácil o meu trabalho, mas nada me dá mais prazer do que fazer o que faço, porque nunca vi nada que me apetecesse fazer igual, nunca vi nada que quisesse imitar. Sempre me pareceu essencial e incontornável fazer diferente. E pagar, calmamente, o preço dessa opção. Para se fazer diferente tem de se trabalhar no fio da navalha, e cortamo-nos de vez em quando.
Há alguns anos imaginava que poderia vir a trabalhar o cluster da pedra em Portugal?
Sim. Desde 2005 que comecei a perceber, de forma nítida, o potencial da experimenta e daquilo que íamos criando com a bienal e com os nossos vários projetos culturais e a forma como esse conhecimento podia ser aplicado diretamente na indústria. Quando em 2008 fui convidada pela Corticeira Amorim para pensar sobre a cortiça, sobre a história da empresa e sobre os vários investimentos que tinham feito na área de I&D [investigação e desenvolvimento], foi o princípio desta nova fase. Depois de termos feito dois grandes projetos para a Amorim, com enorme sucesso e com um impacto muito significativo para a empresa e para Portugal, ficou claro que esta era uma experiência a explorar e uma área na qual investir. O essencial aqui é nunca perder a nossa ancoragem à cultura e utilizar de forma sistemática o design.
O que envolve o trabalho do cluster da pedra?
É acima de tudo um projeto de design estratégico que tem como objetivo reposicionar a imagem deste nosso ‘cluster’. Envolve a compreensão aprofundada daquilo que o cluster é e a definição estratégica do potencial desse ‘cluster’ no panorama mundial. Mas envolve também a criação de uma narrativa, de uma história, sobre a nossa pedra, baseada no existente mas que aponte o seu futuro. A seguir, implica o desenho de um plano rigoroso que combina ferramentas de comunicação com o desenvolvimento de conteúdos e projetos que produzem entre si inovação através da introdução do design e da arquitetura. A seguir, ainda, tem lugar a promoção dos resultados através das cidades e dos parceiros onde escolhemos apresentar esses mesmos projetos. Envolve uma equipa enorme de criativos em Lisboa e no estrangeiro e a utilização da nossa ‘network’ de uma forma muito expressiva. Mais tarde poderemos, se tudo correr bem, falar de outros aspetos deste projeto, mais ligados à introdução das práticas do design na indústria.
Que outros clusters poderiam ser mais trabalhados em termos internacionais?
Vários. Na minha ótica, todos aqueles em que há uma competência industrial de excelência associada à existência das capacidades artesanais, cada vez mais raras. Portugal deve trabalhar para mercados de nicho, com produtos e serviços especiais, únicos, para mercados capazes de apreciar e valorizar a diferença. Não somos um produtor para as massas, pelo contrário. Daí que o rigor, a proteção, a qualidade e a imagem sejam essenciais. Associados à visão e, claro, à inovação.
Pode de alguma forma resumir um conceito de trabalho, tendo em conta a sua experiência?
Não sei se o meu conceito de trabalho é útil. Não vejo o que faço como um trabalho mas sim como algo que faz parte da minha vida sem que tenha de o encaixar nessa definição, nessa categoria. Não me sinto nada habilitada e, também, nada estimulada a definir um conceito de trabalho. Acima de tudo pela particularidade do meu modus operandi e pela forte forma pessoal como vejo tudo o que me interessa, que me faz sentir pouco legitimada para emitir generalidades ou conceitos mais ou menos ecuménicos.
Como é gerida a sua equipa?
A equipa, as várias equipas da experimenta, quer cá, quer no estrangeiro, são a base do nosso sucesso. Creio que criámos na experimenta uma forma de gestão bastante particular, orgânica e flexível, em que há um claro domínio meu na área da conceção e da gestão estratégica que é, no entanto, subordinado à direção financeira e orientada pela nossa grande exigência em termos de eficácia dos resultados. Mas os coordenadores dos nossos vários departamentos, de produção, comunicação, design, etc, têm um papel muito importante. Aliás, a experimenta tem em muitas áreas gente bastante sénior, a quem é dada bastante autonomia, projeto a projeto. É um sítio ótimo para que quem quer crescer e desenvolver as suas capacidades o faça, num contexto de dureza e intranquilidade bastante elevado. E é um sítio onde se é convocado para estar presente em quase tudo, desde o início. Acredito imenso na partilha dos temas, dos projetos, das ideias, dos desafios, mas também das dificuldades.
Como se vê na liderança do projeto? Qual pensa ser o seu papel?
Mantenho-me muito entusiasmada na liderança da experimenta, função que exerço desde o ano 2000. A experimenta continua a ser o principal projeto profissional da minha vida e onde eu mais me revejo, muito embora esteja também agora ligada a outro projeto, empresarial, a ALTA, do qual sou cofundadora também. Sei que o meu papel está relacionado com a forma como a experimenta evoluiu no passado e evolui agora e com a génese de todos os seus projetos, seja em que área for. Respondo por ela – responderei sempre – enquanto a dirigir.
Qual a importância da imagem em todo o trabalho que fazem?
É enorme. A imagem – que é constituída por inúmeros elementos – é uma ferramenta essencial para que a compreensão daquilo que fazemos seja possível. O nosso trabalho tem um sentido acrescentado, na maior parte dos casos, se as pessoas, em geral ou de um ‘target’ específico, o puderem apreender. A partir daí ele poderá contaminar, influenciar, um enorme grupo de pessoas e a ter muito mais peso. Mas a imagem é também parte estruturante dos nossos ‘outputs’, integra-os. Não é um adereço, nem um meio, integra o produto final.
Referiu há pouco que o seu trabalho nunca foi fácil e que não será mais fácil no futuro. Como olha para o futuro em termos profissionais?
Olho para o futuro com muito otimismo e um enorme encantamento, como sempre.
Nota: entrevista feita em meados de 2016 para a edição em papel da revista «human.
»»» Guta Moura Guedes é cofundadora da associação cultural sem fins lucrativos experimenta – Associação para a Promoção do Design e Cultura de Projecto, criada em Lisboa em 1998, da qual é presidente desde 2000. Dedica-se desde 1999 à direção e à programação da bienal «experimentadesign», da qual é coautora. É também responsável ou corresponsável curatorialmente por todos os projetos que a associação leva a cabo desde que foi criada, bem como pela gestão das relações institucionais e internacionais da associação, pela sua comunicação e pelo seu desenvolvimento estratégico. É membro do Advisory Board da Fondazione Bisazza, em Itália, do Conselho Consultivo do IADE – Creative University, do Conselho Consultivo da Babel e do Conselho Consultivo do Grace – Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial. É presidente da ExperimentaDesign Amsterdam Foundation, criada em janeiro de 2008 com o propósito de produzir a edição holandesa da bienal «experimentadesign».