A situação atual resultante da pandemia do COVID-19 obrigou as organizações a procurar meios tecnológicos para se adaptarem em tempo recorde aos novos tempos que vivemos, de forma a privilegiar não só o teletrabalho mas para conseguir manter dentro da normalidade processos de trabalho em curso.
Texto: José Magalhães
Com o objetivo de transmitir uma imagem da situação dos riscos psicossociais em Portugal, utilizámos o contexto de três investigações, em participámos, realizadas nos últimos três anos e que forneceram indicadores, embora dispares pelas áreas de abordagem, mas com pontos comuns, em sede de discussão de resultados. O conteúdo desta observação tende para uma aposta na prática integrada da gestão de recursos humanos (GRH), envolvendo na essência a gestão, a psicologia organizacional, a medicina do trabalho e o técnico de segurança. É com algum arrojo empírico que se assume que esta observância tende claramente para um novo paradigma que se designe por gestão de pessoas.
Com a aprovação, em maio de 2019 pela Organização Mundial de Saúde, do burnout como doença profissional a partir de 2021 ficaram mais visíveis alguns elementos que deixaram de ser opcionais. Ou seja, esta decisão tornou claro a dimensão do problema na União Europeia em que um em cada quatro, trabalhadores apresenta sintomas, e clarifica que é uma patologia psicológica exclusiva do mundo laboral e faz emergir a preocupação pela identificação e prevenção dos riscos psicossociais. Foi neste contexto que optámos por fazer uma observação focal e transversal dos estudos em que participámos e procurar dar uma matriz de interpretação que pudesse fazer tender a gestão de recursos humanos para uma gestão de pessoas.
O estudo sobre o burnout na classe médica portuguesa, realizado em 2016, cuja população registava 49.152 médicos e que obteve uma taxa de resposta de 29% correspondentes às medidas dependentes sendo 9.176 respostas completas e submetidas (21%) partilhadas em 9117 via on-line (99,4%) e 59 em papel (0,6%). Este estudo teve como principal ferramenta de análise o MBI, Maslash Burnout Inventory forneceu alguns resultados que confirmam os indicadores gerais sobre o tema nomeadamente níveis elevados em 66% daqueles profissionais de exaustão emocional, 39% de despersonalização e 30% de diminuição da realização profissional.
Em 2017 decorreu o projeto de adaptação para a língua portuguesa do Guarding Minds @ Work, do Canadá, desenvolvido por investigadores na Faculdade de Ciências de Saúde na Universidade Simon Fraser, em Vancouver, com o intuito de proteger e promover a segurança e saúde no trabalho (Centre for Applied Research in Mental Health and Addiction, 2012). Este projeto, com 700 respondentes, que permitiu uma adaptação cultural e linguística do questionário, com a atribuição da designação de “inventário de avaliação do bem-estar e do ambiente psicossocial “forneceu dados globais em que os respondentes apresentavam níveis de exposição aos riscos psicossociais mais elevados nas dimensões Proteção da Saúde Psicológica (20,2%), Reconhecimento e Recompensa (19,8%) e Cultura Organizacional (19,2%).
Em 2018, num estudo realizado numa grande instituição da Administração Pública foi aplicado o S-ISW questionário europeu padronizado, desenvolvido em colaboração com o Ministério do Trabalho da Bélgica e o Fundo Social Europeu, cientificamente validado, destinado a identificar fatores de risco psicossociais em contexto de trabalho. O S-ISW (Short – Inventory of Stress and Well Being) Inventário de Stresse e Bem-Estar foi aplicado a toda a população da instituição, com 650 trabalhadores, obtendo 74% de respostas e forneceu médias nas dimensões do instrumento, numa escala de análise de zero a sete, o stresse (3,31), a motivação (3,19), constituindo riscos moderados e nos comportamentos indesejáveis (1,72) que constitui risco baixo.
Independentemente da análise de detalhe que cada área de investigação produziu e divulgou o foco deste trabalho de observação é identificar que variáveis emergem que possam indiciar uma maior necessidade de protagonismo da gestão de recursos humanos nas organizações em termos da sua prestação estratégica e politica. Neste contexto, e apenas quantos aos resultados públicos divulgados, é de realçar os 66% de exaustão emocional na classe médica que mediatiza a preocupação de existirem profissionais que já não sentem a mesma motivação e energia emocional para o exercício de uma função a que dedicaram grande parte da sua vida de estudo. No caso da amostragem aleatória, envolvendo 700 respondentes a nível nacional, do GM@W podemos verificar que a saúde psicológica, o reconhecimento e a cultura em sede organizacional são os valores determinantes do desconforto motivacional. Por último e na referência à aplicação do ISW verificamos que a motivação e o stresse são fatores que comprovam os muitos estudos e resultados verificados para o tema.
Embora possa ser um risco de não cientificidade, apraz-me inferir que os fatores de gestão de recursos humanos que apresentam deficit na dinâmica organizacional não correspondem aos 75% do tempo despendido na gestão das tarefas administrativas, mas sim nos 25% que não chegam para a gestão, nos dos recursos, que até incluem os humanos, mas das pessoas.
O Maslash Burnout Inventory na classe médica portuguesa
O conceito de burnout pode ser definido como um estado de exaustão física, mental e psicossocial como consequência de uma exposição continuada a níveis elevados de exigências (stressores) num contexto profissional, com sensação de ausência de controlo pessoal.
A explicação da relação entre stresse e diferentes patologias envolve várias dimensões, de nível biológico e psicossocial onde a personalidade ou o estilo de coping e fatores externos, contextuais e situacionais e o suporte social assumem importância focal. «Nas consequências sobre a atividade laboral identificam-se ainda elevados níveis de absentismo e abandono da profissão, mas também a diminuição da produtividade e da qualidade do desempenho.» As investigações recentes mostram a necessidade de reconhecer a importância desta patologia e procurar fazer prevenção organizada através da gestão de recursos humanos. procurando, através de medidas contributivas, promover o engagement (entre outros a energia e o envolvimento,) incentivando a adoção de formas otimizadas de funcionamento com foco nas pessoas enquanto seres humanos.
Os principais focos nos resultados são, a idade média dos participantes de 43.85 anos; 54% refere que o seu principal local de trabalho é um hospital público; 10% exercem em hospital ou clínica privada sendo o tempo médio de exercício de 11,19 anos. O número de horas contratadas é, em média de 44.32, enquanto o número de horas efetuadas é de 57.06, o que significa que a diferença é de 12.71 horas em média e 45% dos médicos afirmou que raramente faz descanso compensatório.” Estas conclusões ditam claramente que se trata de um problema de subvalorização na gestão de pessoas em “benefício” de uma gestão de recursos assente em horas e duplicação de funções eventualmente para suprir carências salariais.
De relevar neste estudo que a perceção da capacidade de resolução de problemas, do suporte social disponível e de autoeficácia são as três variáveis com percentagens mais elevadas na dimensão «alto», considerando os valores médios das escalas.
«Nas exigências e recursos organizacionais, de destacar que as exigências mentais são consideradas elevadas em 95.8% dos casos e a avaliação das exigências associadas aos horários de trabalho pontuam acima da média em 71% dos casos. No entanto, há ainda uma perceção importante das exigências na relação com os doentes em sofrimento (58%) e de grande exigência nas relações no local de trabalho (57%).» Estes indicadores demonstram mais uma vez a premência de uma outra observação do conceito de pessoa enquanto recurso humano.
«No que se refere às relações entre os indicadores do burnout e as suas consequências pessoais, familiares e organizacionais ou, mais especificamente sobre a saúde física e mental dos médicos, o equilíbrio familiar e desempenho profissional (erros médicos) o modelo que se apresenta salienta o papel da exaustão emocional e da diminuição da realização profissional como preditores significativos e com o maior valor preditivo.» A diminuição do equilíbrio na relação trabalho-família surge como um dos mais significativos fatores associados à dimensão de exaustão emocional pelo que emerge a necessidade de uma política integrada de conciliação da vida profissional, familiar e pessoal. Trata-se indubitavelmente de um problema de âmbito socioprofissional, associado ao sistema de saúde com alguma vulnerabilidade ficando plasmada a importância dos fatores relativos às organizações e condições de trabalho na explicação deste fenómeno que para além do sofrimento e risco associados ao estado de exaustão, despersonalização ou diminuição da realização profissional, nível individual, são preocupantes os impactos negativos na função organizacional destacando que a União Europeia gasta, anualmente, 136 mil milhões de euros em problemas de saúde mental associados ao absentismo e baixa de produtividade que, neste caso, pode ter como base o presentismo.
Guardian Minds @ Work
Este trabalho teve como objetivo principal, como já foi referido, a adaptação do questionário GM@W para a população portuguesa. Procurámos, ainda, determinar as áreas de maior preocupação para a saúde ocupacional considerando que o stresse revela ser um dos mais graves que se apresentam na psicologia atualmente. «A adaptação ao meio ambiente torna-se uma característica integral da personalidade de qualquer ser humano (Gabdreeva, 2010).» Assim, conhecer a perceção do trabalhador face ao ambiente de trabalho permite dotar a organização de suportes para um investimento na configuração de um local de trabalho saudável. Neste estudo, a dimensão da Proteção da Saúde Psicológica integra problemas como o assédio moral, a discriminação e a violência e representa a preocupação mais relatada. A dimensão Proteção da Saúde Psicológica (20,2%) neste estudo é preocupação marcante no que concerne à saúde psicológica no local de trabalho e exige a nossa imediata atenção pela realidade factual da situação ainda que os resultados dos estudos possam refletir apenas uma parte deste problema. Contudo, mais uma vez, os custos inerentes à situação no que diz respeito ao indivíduo, ao local do trabalho e à comunidade em geral são de impacto preocupante.
Como já foi referido os respondentes colocaram um enfoque na insatisfação com a dimensão de Reconhecimento e Recompensa importando procurar compreender o que motiva um empregado sempre foi um desafio fundamental para a gestão estratégica de recursos humanos tendo em linha de conta que o sucesso de uma organização passa por compreendê-lo melhor e esta compreensão tem suporte nas pessoas. «É evidente que a força de trabalho exige cada vez mais dos seus empregadores: salários competitivos, estilos de vida confortáveis, segurança no trabalho, oportunidades de carreira, equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, entre outras imposições.» (Limaye & Sharma, 2012)
A cultura organizacional foi outra dimensão que apresentou resultados de preocupação grave tendo como base que é força unificadora que reúne as pessoas para que trabalhem com qualidade para a consecução dos objetivos organizacionais. No entanto fundamentalmente, uma cultura não é, nem deve ser apenas um conjunto de valores partilhados em uníssono, mas sim uma construção de relações de poder que engloba todas as pessoas e que elas utilizam para alcançar os seus objetivos e as suas expectativas ou seja, uma cultura de pessoas e para pessoas.
Short – Inventory of Stress and well Being
Um facto incontornável é que na, União Europeia cerca de 25% dos trabalhadores referem sofrer de stresse relacionado com o trabalho durante a maioria, ou a totalidade, das suas horas de trabalho (Eurofound e EU-OSHA, 2014).
As leis 102/2009 e 3/2014 afirmam ser a obrigação e o dever do empregador avaliar os riscos relacionados com a segurança e a saúde no trabalho e que devem ser tomadas medidas adequadas de forma a evitar situações perigosas e riscos pessoais bem como a necessidade de haver investigação técnica e científica sobre a segurança e saúde no trabalho, com foco nos novos fatores de risco e na urgência em educar, informar e sensibilizar a sociedade para este tema.
Os riscos psicossociais, estão interligados com insegurança no trabalho, violência e assédio, têm um claro impacto negativo na saúde e bem-estar dos trabalhadores, implicando a implementação de políticas preventivas na ótica do bem-estar físico e mental para a promoção de locais de trabalho saudáveis. Neste estudo em que foi utilizado o S-ISW observámos os indicadores de bem-estar classificados, como já se referiu, em três dimensões: stresse, motivação e comportamentos indesejáveis. Os resultados sobre a dimensão do stresse, apontam para queixas físicas; tensão persistente (dificuldade em relaxar) exaustão; irritação e queixas psicológicas (estado de humor); sentimento reduzido de competência («Sinto que já não aguento o meu trabalho»). na dimensão motivação, relevamos o fator entusiasmo como o de maior de preocupação e quanto aos comportamentos indesejáveis no local de trabalho embora com risco baixo importa realçar os valores que percecionam a presença de assédio e outros comportamentos não desejáveis. Curiosamente a dificuldade de retenção e atração de trabalhadores é outro elemento que gera menos motivação. Qualquer que seja a operacionalização em face dos fatores identificados torna-se visível que em causa está a forma como se devem observar as dinâmicas de trabalho na relação entra quem trabalha. Para acreditar que é possível mudar torna-se necessário olhar para quem trabalha como pessoas e só depois como recursos na definição de algo que «é escasso e imprescindível» e deve assim ser assente numa abordagem realista e focada tendo em conta as limitações, mas apresentando medidas de intervenção contributivas e partilhadas que possam vir melhorar o bem-estar.
O futuro
Os resultados dos trê3 estudos com amostras, realidades e instrumentos diferentes tendem a observar que o desconforto está em variáveis de cariz relacional e emocionais tratadas em sede de recursos. Torna-se necessário alterar a observação ou seja, é preciso crer, e o foco será a compreensão da pessoa, em primeiro lugar em e só depois querer, e o foco estará na decisão sobre o recurso. E para isso arriscamos em deixar reflexão sobre a estratégia a seguir: «i) apostar na sinergia entre empregador, dirigentes e trabalhadores para o mesmo entendimento do objetivo e para a importância para a saúde de todos e da organização em partilharem; ii) a implementação deve ser focada na GRH e para isso é incontornável que o perfil deste dirigente esteja em sintonia com o propósito e com o objetivo e iii) sendo transversal é imprescindível que para além da GRH e em processo integrado entrem, nomeadamente, a psicologia, a medicina ocupacional, a segurança e saúde no trabalho e a componente financeira».
Não sendo o caminho mais fácil é certamente o caminho para que a saúde física e mental de quem trabalha seja assumida como a estratégia fulcral que possa gerar, através da partilha e da resiliência, a felicidade organizacional centrada na pessoa.
»»» José Magalhães (na foto) é professor auxiliar convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), unidade orgânica da Universidade de Lisboa. Trata-se de uma escola orientada para o ensino e a investigação na área das Ciências Sociais e Políticas. Instituição pública de ensino universitário já centenária, acumulou saberes que hoje potenciam a sua capacidade de ajudar os alunos/ formandos a encontrar o rumo certo em ambiente de incerteza.